quinta-feira, 16 de abril de 2020

0,50 centavos de Grécia Antiga: Crono e o coronavírus

Por Jacquelyne Queiroz

       Por causa da pandemia ocasionada pelo covid-16, já estou há 29 dias em casa, tentando fugir do vírus. Nesse período passei a brigar com o relógio. Como professora de História faço o exercício constante de perceber a relação entre os acontecimentos e o tempo. Mesmo assim hoje estou em crise cronologicamente.
Fonte: Acervo pessoal.
        Lembrei-me que em 2015 vi em um shopping em Salvador uma loja de relógios chamada Cronus e fiquei muito encantada. Hoje em meio a pandemia, penso diferente, acredito que não conseguiria adentrar num local e presenciar sem agonia o tempo passar em tantos relógios.
      Essa loja e a situação que vivemos hoje me fizeram lembrar das narrativas gregas antigas que envolvem o titã Crono. Urano (Céu) todas as noites se unia a Gaia (Terra), desses encontros nasceram muitos filhos que Urano detestava e por isso a todos escondia no interior do solo. Gaia irritada com tal situação entregou na mão de seu filho Crono uma foice. Este no nomomento certo “[...] do pai pênis ceifou [...]”  (Hesíodo, Teogonia, v. 180-181).
           Na cosmogonia grega a função do rei é criar e procriar. Ao ser castrado por Crono (Tempo), restou ao soberano Urano (Céu) multilado e impotente cair na ociosidade (BRANDÃO, 1991, p. 200). Enquando isso, Crono assume o poder, se une a Réia e a todos os filhos ele passa a engolir, temendo que algum deles se tornasse rei em seu lugar (Hesíodo, Teogonia, v. 459-467).           
            Depois de Réia muito bem tramar, Zeus consegue fazer Crono vomitar seus irmãos: Héstia, Deméter, Hera, Hades e Posídon. E depois de guerrear por dez anos, prende seu pai Crono no Tártaro, nas pronfudezas da terra, em um local cercado por muro de bronze e vigiados pelos hecatônquiros gigantes Coto (“o que bate”), Briareu (“o forte”) e Gias (“o lembrado”), cada um dos quais tinha cinquenta cabeças e cem braços (KERÉNYI, 2015, p. 26).
             Ao meu ver,  Crono (Tempo) esteve preso pelos desígnios de Zeus até alguns meses atrás. Acredito que Coto, Briareu e Gias foram contaminados pelo coronavírus também. Imagino a dor terrível que sentiram em suas cabeças e como foi incômodo ter cinquenta narizes corizando ao mesmo tempo. Penso nos cem braços doloridos, nos corpos gigantes ardendo em febre e sem encontrar um dipirona nas profundezas do Tártaro para tomar. Um não... já que os três hecatônquiros juntos possuíam 150 bocas. Ficou fácil então para o titã do Tempo escapar de sua prisão.
          Crono agora está solto. E um deus grego se manifesta pela sua presença (TORRANO, 2014, p. 49-50). Para muitos contaminados infelizmente Crono se fez ausência, pois faleceram tão rápido que não tiveram tempo para se curarem nem se despedirem de suas famílias. Os profissionais de saúde estão inclusive correndo atrás de Crono para ajudarem os pacientes doentes.
         Já aqui em casa parece que Crono está fazendo morada. Percebi que eu me comportava como Urano e seu pênis antes da pandemia, queria produzir, escrever e publicar sem parar para alimentar o Lattes, pois tinha o receio do currículo me morder mais tarde com fome.
Bem similar ao mito, veio Crono e me castrou. Passei a me comportar como Urano mutilado, sem fecundidade. Percebo que também perdi a fertilidade acadêmica. Não consigo produzir como esperava, pois me sinto assombrada pelo espectro da morte e o temor de minha cidade se tornar o reino de Hades. E Assim como o deus do Céu me recolho na ociosidade. Em outros momentos me sinto como Zeus, lutando contra Crono e prendendo-o sob vigilância ferrenha. Seguindo os seus passos, tomo os domínios de Crono e passo a comandar o mundo... pelo menos tenho essa ilusão.
Ora me comportando como Urano castrado, ora como Zeus, vou seguindo na quarentena tentado lidar com o Tempo que continua livre de seu cativeiro.  Não tenho ideia de como vou me relacionar com Crono após a pandemia. Mas uma coisa é certa: eu não passo perto daquela loja de relógios Cronus tão cedo.
                         
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. v. I. Petrópolis: Vozes, 1991.
HESÍODO. Teogonia. Versão bilíngue grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014
HERÉNYI, Karl. A mitologia dos gregos: A história dos deuses e dos homens. v. I. Petrópolis: Vozes, 2015.
TORRANO, Jaa. O Mundo como função de Musas. In: HESÍODO. Teogonia. Versão bilíngue grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014. p. 13-100.

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