Por Jacquelyne Queiroz
Por causa da pandemia ocasionada pelo covid-16, já estou há
29 dias em casa, tentando fugir do vírus. Nesse período passei a brigar com o
relógio. Como professora de História faço o exercício constante de perceber a
relação entre os acontecimentos e o tempo. Mesmo assim hoje estou em crise
cronologicamente.
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Fonte: Acervo pessoal. |
Lembrei-me que em 2015 vi em um
shopping em Salvador uma loja de relógios chamada Cronus e fiquei muito
encantada. Hoje em meio a pandemia, penso diferente, acredito que não
conseguiria adentrar num local e presenciar sem agonia o tempo passar em tantos
relógios.
Essa
loja e a situação que vivemos hoje me fizeram lembrar das narrativas gregas
antigas que envolvem o titã Crono. Urano (Céu) todas as noites se unia a Gaia
(Terra), desses encontros nasceram muitos filhos que Urano detestava e por isso
a todos escondia no interior do solo. Gaia irritada com tal situação entregou
na mão de seu filho Crono uma foice. Este no nomomento certo “[...] do pai
pênis ceifou [...]” (Hesíodo, Teogonia, v. 180-181).
Na
cosmogonia grega a função do rei é criar e procriar. Ao ser castrado por Crono
(Tempo), restou ao soberano Urano (Céu) multilado e impotente cair na
ociosidade (BRANDÃO, 1991, p. 200). Enquando isso, Crono assume o poder, se une
a Réia e a todos os filhos ele passa a engolir, temendo que algum deles se
tornasse rei em seu lugar (Hesíodo, Teogonia,
v. 459-467).
Depois
de Réia muito bem tramar, Zeus consegue fazer Crono vomitar seus irmãos: Héstia,
Deméter, Hera, Hades e Posídon. E depois de guerrear por dez anos, prende seu
pai Crono no Tártaro, nas pronfudezas da terra, em um local cercado por muro de
bronze e vigiados pelos hecatônquiros gigantes Coto (“o que bate”), Briareu (“o
forte”) e Gias (“o lembrado”), cada um dos quais tinha cinquenta cabeças e cem
braços (KERÉNYI, 2015, p. 26).
Ao meu ver, Crono (Tempo) esteve preso pelos desígnios de
Zeus até alguns meses atrás. Acredito que Coto, Briareu e Gias foram
contaminados pelo coronavírus também. Imagino a dor terrível que sentiram em
suas cabeças e como foi incômodo ter cinquenta narizes corizando ao mesmo tempo.
Penso nos cem braços doloridos, nos corpos gigantes ardendo em febre e sem
encontrar um dipirona nas profundezas do Tártaro para tomar. Um não... já que
os três hecatônquiros juntos possuíam 150 bocas. Ficou fácil então para o titã
do Tempo escapar de sua prisão.
Crono agora está solto. E um deus
grego se manifesta pela sua presença (TORRANO, 2014, p. 49-50). Para muitos
contaminados infelizmente Crono se fez ausência, pois faleceram tão rápido que
não tiveram tempo para se curarem nem se despedirem de suas famílias. Os
profissionais de saúde estão inclusive correndo atrás de Crono para ajudarem os
pacientes doentes.
Já aqui em casa parece que Crono
está fazendo morada. Percebi que eu me comportava como Urano e seu pênis antes
da pandemia, queria produzir, escrever e publicar sem parar para alimentar o Lattes, pois tinha o receio do currículo
me morder mais tarde com fome.
Bem similar ao mito, veio Crono e me
castrou. Passei a me comportar como Urano mutilado, sem fecundidade. Percebo
que também perdi a fertilidade acadêmica. Não consigo produzir como esperava,
pois me sinto assombrada pelo espectro da morte e o temor de minha cidade se
tornar o reino de Hades. E Assim como o deus do Céu me recolho na ociosidade. Em
outros momentos me sinto como Zeus, lutando contra Crono e prendendo-o sob vigilância
ferrenha. Seguindo os seus passos, tomo os domínios de Crono e passo a comandar
o mundo... pelo menos tenho essa ilusão.
Ora me comportando como Urano
castrado, ora como Zeus, vou seguindo na quarentena tentado lidar com o Tempo
que continua livre de seu cativeiro. Não
tenho ideia de como vou me relacionar com Crono após a pandemia. Mas uma coisa
é certa: eu não passo perto daquela loja de relógios Cronus tão cedo.
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO,
Junito de Souza. Mitologia Grega. v.
I. Petrópolis: Vozes, 1991.
HESÍODO.
Teogonia. Versão bilíngue
grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014
HERÉNYI,
Karl. A mitologia dos gregos: A
história dos deuses e dos homens. v. I. Petrópolis: Vozes, 2015.
TORRANO,
Jaa. O Mundo como função de Musas. In:
HESÍODO. Teogonia. Versão bilíngue
grego/português. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014. p.
13-100.